Partire è un pó morire, dice l’adagio, ma è meglio partire che morire.”

(Carrara, na peça teatral Merica, Merica)

domingo, 12 de junho de 2011

Xarope de Agrião, um conto de amor

Apenas ilustração


A narrativa a seguir é apenas baseada em fatos reais. Teve como protagonistas jovens filhos de italianos no início do século 20. Diante da impossibilidade de revelar suas identidades, transformei num pequeno conto.

Eles eram jovens...

E apaixonados.


Ela apenas uma adolescente, nem completara seus quinze anos e ele, um mocinho. Belo e loiro, fazia as meninas da época suspirarem.


Ambos eram filhos de italianos, imigrantes que viviam numa pequena cidade brasileira onde o aroma de vinho estava no ar.


Entre os casarões do século 19 eles se olhavam. Nas quermesses da igreja podiam se aproximar um pouco mais. Eram jovens de sua época, o promissor início do século 20. Estavam cheios de energia e felizes. O mundo lhes sorria como a última moda nas vitrines das lojas.


O pai dela proibira o namoro. Tratava-se de uma das filhas mais novas, menina esguia e pequena, aparentando menos idade do que seus olhos almejavam exibir.


A família dele era mais humilde, vivia da terra; o pai dela progredira a olhos vistos, tornando-se um bem sucedido empresário da cidade. Os negócios do pai da moça eram diversificados. Ele viera da Itália como pedreiro, com trabalho garantido na promissora indústria de tecidos que se instalara na cidade. Os primeiros tempos foram duros, mas as oportunidades de abertura de novas casas comerciais, com a chegada dos italianos e a era republicana que invadira o começo do século, ele soubera aproveitar.


Queria para a filha alguém à altura de seu padrão social.


O namoro acontecia tenso, escondido, cada vez mais apaixonado. O sabor de amor proibido e o ímpeto adolescente tornavam aquele romance digno das poesias publicadas nos tablóides da época. E viver essa aventura era coisa de que um casal de adolescentes, mesmo no início do século 20, jamais abriria mão. Era romântico e emocionante trocar beijos carregados de desejo e medo. Selavam seu amor em cartas escritas sob a luz de velas e entregues por cúmplices cupidos.


E então o moço, alto e robusto, deixou-se tocar pelo mal do século anterior. A cidade era de uma altitude que favorecia a cura da tuberculose, mas seu estado era grave.


Com a ajuda de um senhor que entendia de ervas, ela se debatia em busca da cura de seu objeto de paixão, quando ainda era muito comum às pessoas sucumbirem à doença que tirava o sopro de vida dos pulmões. Por diversas manhãs, guiada pelo curandeiro, a menina magra caminhava por estradas de terra, cabelos castanhos brilhando ao sol, em busca de plantações de agrião, à beira dos rios.


Os maços frescos de verde molhado enchiam seus braços, enquanto o cheiro de erva a envolvia como os pensamentos que lhe pesavam na mente de menina. A ameaça da morte rondava o ar, bailando horrorosa ao seu redor. E a saudade do toque, da voz e do movimento dos cabelos claros do jovem, faziam-na tontear pelas emoções reprimidas.


Xarope de agrião era considerado um santo remédio na cura de problemas pulmorares e a namorada se desfazia em mesuras ao curandeiro, pegando os frascos do melado verde escuro, que fazia chegar às mãos do namorado, num esforço próprio dos apaixonados.


Ele curou-se e em pouco tempo mostrava novamente sua vitalidade de jovem filho de italianos acostumado ao trabalho. A família da moça continuava alheia ao seu amor.


E foi o pai dela quem, numa noite, inesperadamente, entregou-se nos braços da morte.


O velório transcorreu como um acontecimento social com muito choro, velas, roupas negras, mulheres de véus pretos que deixavam transparecer cabelos presos sob a renda, e um luto que perduraria o tempo de costume. No féretro, as famílias bem relacionadas da cidade ocuparam as ruas, onde o odor de flores de cemitério combinava com olhos vermelhos e palavras ditas à meia voz.


Mas o namorado marcou ausência no enterro do pai da moça.


Essa falta numa passagem triste daria um outro rumo a essa história de amor, porque talvez o primeiro amor da jovem tivesse sido o pai. E com primeiro amor não se barganha. Ela não perdoou.


Todas as noites, tendo a irmã mais nova por testemunha, a moça se ajoelhava diante da cama; terço na mão, molhava o rosto por lágrimas sentidas. Mas era decidida. Com a mesma obstinação com a qual fora em busca de agrião para o xarope que, acreditava, devolvera a vida ao seu amor, ela o repudiara por tê-la deixado só num momento de morte. Era uma afronta não comparecer ao velório do pai,  ainda que repudiado por sua família.


E o romance findou-se, a paixão se esvaiu com o tempo, as lembranças se esmaeceram como fotos antigas em papel amarelado. Mas não se sabe se o amor acabou...


Ela se casou, anos depois, com um elegante farmacêutico, à altura do poderio econômico de sua família. E ele se uniu em matrimônio a uma professora. Ela, dona-de-casa; ele, funcionário público. Moravam em casas a poucas ruas de distância, até avistaram-se por vezes em acontecimentos sociais, mas não havia lugar para burlar regras ou reacender velhos sentimentos adolescentes.


Viveram vidas paralelas. Tiveram filhos, envelheceram.


E foi numa manhã de sol do século 21, quando ela se dirigia a uma lojinha com ar de antiga, em busca de linhas para suas costuras, que se cruzaram na mesma calçada estreita da época em que se encontravam enamorados.


Ela jamais se permitira admitir um olhar para o homem que ousara ofender seu pai no momento da partida. O amor sufocado dera lugar à raiva. Mas ele era um descendente de italiano, riso aberto, brincalhão, que aprendera a aceitar as imposições da vida e tirar dela tudo de melhor.


Em segundos, voltaram no tempo, ambos viúvos, ele calvo, mas com os mesmos expressivos olhos azuis; ela, cabelos brancos, olhar firme e a mesma enganadora fragilidade no andar.


Foi ele quem falou primeiro, com ar de deboche, escondendo a emoção:


- Ainda vamos nos encontrar no céu...


Pisando duro, ela se desviou, e chegou em casa contando o fato, indignada.


Ambos deixaram esse mundo pouco tempo depois, mas os céus nunca confirmaram o encontro e nenhuma estrela até o momento declarou-se testemunha.


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