Partire è un pó morire, dice l’adagio, ma è meglio partire che morire.”

(Carrara, na peça teatral Merica, Merica)

terça-feira, 7 de junho de 2011

UMA NOVA VIDA


Sentado nos degraus da porta da cozinha, o menino de seus quatro aninhos, acena para a mãe, ocupada com os afazeres ao lado do fogão a lenha, e chama:

- Mama, vieni a vedere cuanti angioletti che mi portano i fiori!

A mãe, Giusephina, só tem tempo de levantar o olhar  e tentar espreitar os anjinhos que o filho afirmava  estarem diante dele, trazendo-lhe flores, enquanto o menino entra porta adentro, correndo em sua direção. Mas, a criança dá poucos passos, antes de cair. O menino loiro e franzino está morto no chão de terra batida da cozinha.

Quem pudesse testemunhar a abundância e a beleza da comuna ou cidade de Campi Salentina – plantada na província de Lecce, na região da Puglia, onde os campos eram cobertos por vinhedos e oliveiras e a paisagem florida aliava-se às cores das construções antigas, para dar testemunho da típica arquitetura rural da Itália meridional – jamais poderia imaginar que, nesse lugar, crianças nascidas no final do século 19, desde muito cedo viviam o drama da fome e, na maioria das vezes, sua única salvação era o doce chamado dos anjos.

Após a perda do filho caçula, o agricultor Raffaele Bardicchia que vivia numa casa simples em Campi Salentina ao lado da mulher Giusephina Del Mondo e dos filhos Carmello, Nazareth e Domenico, decide emigrar para o Brasil. Antes que partissem, sua mulher deu à luz outra criança, desta vez uma menina, Maria. Naquelas condições, viver era muito difícil. A fome e as consequentes doenças imperavam em grande parte da Itália, e a vida daquela família se tornara miserável. Os pais trabalhavam o dia todo na lavoura, trabalho escravo, onde pouco lhes restava para sobreviver e cuidar com dignidade dos filhos. As crianças passavam o dia em casa, praticamente sozinhas. O filho maior, com 9 anos, era quem cuidava dos irmãos menores na ausência dos pais.

Os Bardicchia desembarcaram em Santos por volta de 1900

A comida deixada pela mãe numa única panela, sobre os tijolos do fogão, não dava para saciar a fome e repor as energias gastas nas brincadeiras daqueles três pequenos seres em crescimento. Quase não havia o que comer. Para driblar o estômago vazio, as crianças iam para o mato, nos arredores da casa, à procura de nozes e castanhas, que comiam ali mesmo. Quando voltavam, já sentiam fome novamente. Muitas vezes, não resistiam ao aroma dos pães caseiros, exibidos na casa vizinha numa tábua ao ar livre, à espera de algum comprador. Era Carmello quem se precipitava pelos arames da cerca e furtava os pães do tamanho exato da fome que sentiam naquele momento; depois de devorá-los, os meninos corriam esconder-se debaixo da cama, com medo da polícia. No final da tarde, quando a mãe chegava do trabalho, batia, batia, batia na porta, e ninguém respondia. As crianças pensavam tratar-se dos policiais que as prenderiam pelo furto e choravam escondidas.

UM BEBÊ AO MAR

Os Bardicchia partiram para o Brasil na condição de imigrantes. Viajaram no porão do navio onde o espaço era pequeno para tanta gente, um lugar escuro e mal arejado, onde a peste - algum tipo de doença infecciosa de fácil contágio, começou a ceifar vidas. A cura da enfermidade dependia mais da própria imunidade e resistência física do doente, não havia médicos nem remédios a bordo, e os corpos iam, um a um, sendo lançados ao mar, às vezes, antes que o doente desse seu último suspiro.

A pequena Maria adoecera e desfalecia nos braços de sua mãe Giusephina, uma mulher desesperada. Já perdera um filho, levado pela fome, e essa mulher estava convicta de que a peste não poderia jamais carregar sua menina. Ela não permitiria. E abraçava com força o corpo do bebê, beijava seu rosto já pálido de onde o sopro da vida parecia ter se esvaído. 

O capitão do navio entra no porão tapando a boca e o nariz com um lenço, o cheiro de sujeira e morte daquele lugar lhe causa náuseas. Temendo outros casos da doença e que a entrega de sua “carga” de imigrantes, a representação de mais braços para a lavoura no Brasil, ficasse muito prejudicada, ele tem que se livrar dos doentes. Morrerão mesmo, pensa ele. Olha para a criança sem vida e a arranca dos braços da mãe, sob os protestos de alguns e a indiferença mórbida de outros. A vida já perdera seu valor naquele navio. Mas a mãe ainda tem forças para gritar:

- No!!! Mia Maria, mia bambina, no...

O capitão sai a passos largos, aparentando indiferença, levanta o bebê acima de sua cabeça, para evitar aspirar o cheiro da peste. Mas a mãe não desiste, dribla a resistência da tripulação e corre com o capitão para o convés. Respira ar puro e isso lhe dá novo impulso para salvar sua filha. Giusephina pode ver o azul escuro das águas naquele pedaço imenso de mar e as mãos do capitão levantadas ao céu, onde o sol cintila anunciando um esplêndido espetáculo matinal. Ao fundo, voam gaivotas, mas a mulher só presta atenção às mãos grandes e fortes do capitão e à sua determinação de atirar o bebê ao mar, como num sacrifício a algum deus inclemente. 

Ela se joga ao chão sujo, de joelhos, de sua boca não saem mais sons, os gritos desesperados morrem na garganta rouca e seca, o capitão pisa em falso, por breves segundos o bebê parece fugir de suas mãos, mas ele consegue segurar novamente a menina pelos braços. O desfecho está prestes a acontecer, o corpo da menina dormirá para sempre no fundo do mar, mas sua alma de criança não tem certeza disso e, com o puxão nos bracinhos, Maria se põe a chorar. O choro alto e forte da menina ecoa por todo o navio...

A cena pode ter sido esta, ou talvez um pouco diferente, como mostrou a novela Terra Nostra, levada ao ar pela Rede Globo. O que importa é que uma criança foi salva pelo amor de sua mãe, uma imigrante italiana, que vislumbrou um fio de esperança, apesar de ter sua própria vida mergulhada na dor da fome e da doença. 

Maria, a pequena sobrevivente da peste, cresceu no Brasil, na cidade de Itu, onde se casou com Hilário Fioravanti, um próspero empresário. A família tornou-se proprietária da conhecida empresa de ônibus da região, que leva seu nome.

Quando adulta, Maria ainda conservava a vontade de aprender a ler e escrever. E conseguiu. Há alguns anos, já idosa, ela soube que o autor de novelas Benedito Ruy Barbosa, proprietário de uma fazenda próxima à de sua família, nos arredores da cidade, famosa por seus exageros,  estava entrevistando imigrantes italianos ao realizar uma pesquisa para a nova novela que escreveria para a Globo. Maria mandou-lhe uma carta onde, com a ajuda da filha, narrou sua história e nela o autor se inspirou para uma das cenas iniciais da novela Terra Nostra, como relatam suas sobrinhas Lourdes e Maria Baldichi.

BALDICHI

Em 1900, calculam os descendentes, os Bardicchia desembarcaram no porto de Santos. Talvez por algum equívoco no registro de seus documentos, a grafia do sobrenome da família acabou se tornando Baldichi. 

O destino dos Baldichi era o trabalho na lavoura, numa fazenda em Itu, onde cresceram as crianças Carmello, Nazareth, Domenico e Maria. Mas a vida da família continuava difícil, a fome rondava a casa simples destinada aos colonos. Depois de algum tempo, percebendo que o trabalho na fazenda não lhes rendia o suficiente para viver com dignidade, Raffaele e Giusephina encontraram emprego em Salto, onde ficavam durante a semana, deixando as crianças aos cuidados de sua antiga patroa. Mas a proprietária da fazenda explorava até o trabalho infantil. Embora pequenas, as crianças iam à roça com os adultos, onde tinham a tarefa de plantar amendoim e feijão. Maria levava os grãos em seu aventalzinho. As covas eram feitas por adultos e as crianças deveriam colocar um grão em cada uma delas. 
  
A fome deixara seqüelas e Domenico era um menino considerado muito comilão por seus pais. Nos dias do plantio de amendoim, ele colocava um punhado de grãos em cada cova, para terminar logo o trabalho. Em sua mente infantil, marcava o lugar dessas covas. À noite, quando todos dormiam, ele se levantava e voltava para pegar os grãos de amendoim, que devorava com prazer.
Mas, passado algum tempo, o dono da fazenda percebia que nada brotava em alguns canteiros da plantação, e as crianças levavam uma surra pelo cultivo mal feito.

TRAVESSURAS

Apesar do trabalho quase escravo a que sua família era submetida, e da extrema pobreza em que viviam na fazenda, as crianças tinham tempo e motivos para travessuras. E foi na ausência de seus pais que Domenico aprontou novamente o que o levaria a mais uma surra das muitas que tomara quando pequeno. Maria estava comendo alguma coisa e o irmão, sempre faminto, lhe propôs:
- Me dá isso que você tá comendo, que eu te dou um presente, uma coisa maravilhosa. A menina era muito crédula e ingênua:
- Você dá? – E ela entregou-lhe todo o alimento.
- Feche os olhos e estique o seu avental. – ordenou ele.

Ela fez como o irmão pedira e, em resposta, como prometera à menina, ele deu-lhe o presente: uma pá de brasa ardente, tirada do fogão, que despejou dentro de seu avental. Domenico, que nasceu em 10 de dezembro de 1894, devia ter uns oito anos. Apesar da barriga de Maria ter ficado toda queimada, e dos tapas que o menino levou da mãe, no final, os irmãos riam muito da história. Mas, depois disso, a dona da fazenda não quis mais  se responsabilizar  pelas crianças na ausência de seus pais.

O jovem Domenico Baldichi

SAPATOS NOVOS

Já adolescente, Domenico, o terceiro filho do casal, começou a trabalhar em Salto como entregador de leite e ia sempre com os pés descalços, fizesse calor ou frio, chovesse ou brilhasse o sol. A pobreza fizera de Raffaele, o pai, um homem muito duro e insensível às necessidades de seus filhos; talvez o medo de passar fome novamente levasse à preocupação única de garantir o que comer no dia seguinte. Tudo o mais, para ele, era supérfluo. Não queria que os filhos fossem à escola, isso era coisa prá rico, e eles só vestiam roupas usadas, que recebiam como doação, por caridade de alguém.

Domenico devia ter uns quinze anos, quando o dono da fazenda para quem trabalhava observou:
- Você está sempre com os pés no chão. Por que não compra uns sapatos? Você trabalha, ganha o seu dinheiro.

O menino animou-se com o incentivo e se esqueceu de que todo o dinheiro que recebia deveria ser entregue ao pai. Assim que recebeu o salário, foi a uma loja de calçados e escolheu um belo par de sapatos. Chegou em casa orgulhoso, mostrando os pés calçados aos pais. Mas Raffaele não compartilhava da opinião do patrão de Domenico e deu-lhe uma nova surra, desta vez pelos sapatos novos.

A TARANTELLA

Então, o jovem resolveu deixar a fazenda em que a família Baldichi vivia e foi morar sozinho em Salto. Como todos os jovens de sua idade, ele gostava de festas e ia aos bailes que os colonos italianos faziam nas fazendas. E foi numa dessas festas que viu pela primeira vez Elvira de Lima, animada, olhos brilhantes e rosto corado, dançando uma genuína Tarantella. Ela era operária na fábrica de tecidos Brasital, em São Roque, e estava de férias em casa de parentes na cidade de Itu.

Domenico crescera e se tornara um moço alto e atraente, poderia ser comparado em beleza aos astros do cinema da época. As moças suspiravam por ele, mas o jovem italiano se apaixonou por Elvira. As companheiras de trabalho da moça na tecelagem, em São Roque, viram a foto do namorado da jovem e ficaram inconformadas. Deixando transparecer uma ponta de inveja, mas fingindo não perceber que Elvira ouvia, comentavam:

- O que é que aquele moço lindo viu na Elvira, tão feinha, sem graça?
E a moça chorava, inconformada, com medo de perder o namorado.

Mas Domenico havia escolhido Elvira. Depois de algum tempo de namoro, resolveram casar-se. O casamento foi na fazenda de tia Maria, que lhes deu todo apoio e, por algum tempo, o jovem casal ficou morando com os pais dele na fazenda em Itu. Elvira já estava grávida de sua primeira filha, a quem deu o nome de Maria, quando Domenico encontrou emprego na tecelagem Brasital. Resolveram mudar-se para São Roque e, felizmente, já tinham onde morar, pois Elvira há algum tempo recebera uma pequena casa como herança, após a morte de uma tia.

O PIVÔ DE UMA GREVE

Domenico, que ficou mais tarde conhecido como Domingos e chamado pelo apelido bem brasileiro, Mingo, fazia serviços gerais na fábrica de tecidos, mas era preciso completar o orçamento da família e ele plantava verduras e hortaliças, que saía para vender nos períodos de folga do trabalho na tecelagem. Assim, ajudado por Elvira que passava roupas para fora, ele não deixava que nada faltasse às suas filhas, Maria e Lourdes, as irmãs que deram seu depoimento para essa narrativa.

As meninas eram pequenas e ainda não haviam ingressado na escola, quando ele passou a trabalhar como guarda noturno da tecelagem. São Roque era uma cidade que apresentava um clima muito frio, principalmente nas noites de inverno, e a direção da indústria fornecia agasalhos aos vigias. Domenico recebeu um grosso poncho de lã italiana. Mas, como só havia um cobertor em sua casa, nas frias madrugadas em que a geada cobria os campos e os telhados da cidade, ela saía para trabalhar e deixava seu agasalho para que servisse de coberta às meninas durante a noite. 

Domenico era um homem de bom coração que a todos conquistava.
Quando sua filha Lourdes mal completara cinco anos, contraiu sarampo e, em seguida, catapora e tosse comprida, doenças infecciosas para as quais não havia vacinas na época, e que era comum acometerem as crianças. Porém, a menina adoecera no mesmo momento em que sua mãe estava prestes a ser internada, no hospital Humberto I, em São Paulo, conveniado com a Brasital, para se submeter a uma cirurgia. A família viajou de trem, à noite, e a pequena Lourdes delirava com a febre alta.

Em São Paulo, eles hospedaram-se na casa de tio Carmello, o irmão do pai, que os esperava na estação. Elvira foi internada e Domenico não tinha como voltar a São Roque e deixar a filha e a mulher enfermas. Em sua cabeça martelavam as palavras do diretor da Brasital, Alberto Randi:
- Você não tem permissão para faltar amanhã. Se não vier, será despedido. 

Na família do irmão todos trabalhavam e não havia com quem deixar as meninas e ainda dar atenção à mulher no hospital. Assim, Domenico ficou por dois dias em São Paulo, até que a mulher e a filha melhorassem de saúde.
Elvira continuava no hospital quando ele retornou a São Roque, para o trabalho na Brasital. Mas suas dificuldades de nada importavam ao diretor da fábrica de tecidos que tinha fama de autoritário e muito exigente. Alberto Randi despediu Domenico assim que ele chegou à tecelagem naquela manhã, após ter se ausentado do trabalho por dois dias, tendo como motivo doença na família.

Inconformados com a injustiça, os operários da indústria resolveram entrar em greve. Sob as ameaças de por todo mundo prá fora, esbravejadas por Randi, eles paralisaram as máquinas da tecelagem por uma semana. Somente voltaram quando o diretor concordou em readmitir Domenico.

Depois desse episódio, Alberto Randi, considerado extremamente rigoroso pelos operários, fez-se amigo de Domenico. Iam juntos às romarias à Pirapora do Bom Jesus, e ele sugeriu que o operário cultivasse sua horta num pedaço de terra pertencente à indústria.

Domenico Baldichi trabalhou na fábrica de tecidos até aposentar-se. Fez amigos e construiu uma família em São Roque, onde vivem suas filhas e netas. Neste 2011, essa família de origem italiana está na quarta geração.


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