Partire è un pó morire, dice l’adagio, ma è meglio partire che morire.”

(Carrara, na peça teatral Merica, Merica)

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

LONGE DA GUERRA

Claudina e Giuseppe Marchiori - Itália, julho de 1946


Recém casados, eles desembarcaram no Rio de Janeiro provenientes da província italiana de Veneza, no Vêneto. Ao descer do navio, depararam-se com uma parada militar na avenida Rio Branco e pensaram: soldados, canhões, armas... guerra! Apavorados, voltaram correndo ao navio e ansiosos, desabafaram com o comandante: 

- Nós viemos aqui para sair de uma guerra e encontramos outra! - Obviamente que ainda falavam em italiano, o tom da voz denunciando o terror. 

Mas, divertido, o oficial tranqüilizou-os:

- Não! Não! É festa nacional brasileira (risos). Não se incomodem...

Era 7 de setembro de 1946 quando Claudina e Giuseppe Marchiori pisaram o solo brasileiro pela primeira vez.

REDENTOR

Tranqüilizado do susto inicial, o jovem casal pode apreciar a beleza do Rio de Janeiro. Passeando pelo porto, Dina percebia que estava em outro mundo. Encantava-se com os negros que passavam, belos, a pele escura brilhante de suor, carregando sacos de café. Era a primeira vez que via alguém da raça negra.

À noite, no hotel, o casal avistava pela janela, por detrás das nuvens, uma intensa claridade. Pensavam estar tendo uma alucinação. Mas, novamente, a nuvem passava e o clarão reaparecia. No outro dia, souberam que era o Cristo Redentor, que foram conhecer.

- Foi uma emoção, mas muito, muito, muito grande - conta Dina.

CARA OU COROA?

Giuseppe e Claudina ficaram por três dias no Rio de Janeiro e depois partiram para Santos. Deveriam decidir se permaneceriam no Brasil. Seus passaportes lhes permitiam desembarcar em sete países da América Latina. Grávida de sete meses, ela se sentira enjoada na viagem de navio. O casal estava indeciso sobre seu destino. Num arroubo  próprio da juventude, resolveram colocar sua vida nas mãos da sorte. E jogaram cara ou coroa

- Se dá testa (cara) nós vamos ficar, se é coroa, vamos prosseguir... Saiu testa e nós ficamos no Brasil - recorda Dina.

O projeto do casal apontava para São Paulo para onde se dirigiram de ônibus. Giuseppe era geômetro e não tardou a encontrar emprego. Instalaram-se numa chácara muito apreciada por Dina. Havia uma família de caseiros e ali começaria seu contato com a língua portuguesa e os costumes brasileiros.

CONFUSÕES

A casa onde viviam ficava no alto de uma montanha e em seu sopé havia uma pequena venda onde ela arriscava fazer suas compras, mas era impossível não se meter em confusões com o novo idioma. Logo nos primeiros dias, levou uma listinha e pediu burro

- Como a senhora me chama de burro? - gritava o dono da venda, irritado, sem saber que se tratava de manteiga, na língua italiana. 

Necessitando de vinagre, ela pediu aceto, em italiano, e o vendedor indicou-lhe o caminho da farmácia, pensando tratar-se de acetona.
Foi com a caseira do sítio, que vivia com o marido e dois filhos pequenos, que Dina aprendeu as primeiras palavras em português não tão acadêmico. Ao sair da chácara já sabia muitas palavras, mas a pronúncia era deveras popular, como dizer que o nome da cor era vermeio.

Apesar da simplicidade, Dina identificou-se com os caseiros e admirava o prazer que pareciam sentir em comer arroz e feijão no almoço e no jantar, enquanto ela preparava sempre seu macarrãozinho com brodo de carne. Adorava o cheirinho de feijão que vinha da panela de sua nova amiga brasileira.

TRAUMAS

A identificação de Dina com a família de caseiros, pobre, que possuía apenas uma vaquinha e ainda lhe oferecia leite, remete-a às origens na Itália. Sua família era de origem humilde, o pai dono de um moinho rudimentar que, no início, movia-se com auxílio de molas. Com o passar dos anos foi-se modernizando até transformar-se numa pequena fábrica de farinha de trigo, destruída por bombardeios durante a Segunda Guerra Mundial, cujos horrores Dina viveu em sua adolescência.

A família morava a sete quilômetros de Veneza, mas com a destruição causada pela guerra, teve de se mudar para uma casa de campanha que seus pais possuíam na Riviera di Brenda, localizada entre Veneza e Padova.

- Na guerra padecemos todo tipo de sofrimento - lembra Dina. 

Faltava tudo, de alimentos a roupas. Aos vinte anos, Dina perdeu a audição de um dos ouvidos. Em 1943, um especialista se dispôs a fazer uma limpeza em seu ouvido para sanar uma infecção. Mas, no hospital, em meio ao procedimento, as luzes se apagaram, conseqüência de um bombardeio na estação ferroviária, e a operação teve de continuar à luz de velas, sendo o médico obrigado a realizar uma intervenção radical.

De outra feita, dois anos depois, Dina chegara em casa com a amiga Rosana e logo sentira o cheiro de cogumelos frescos, com os quais sua mãe, Giudita, preparava um risoto, no fogão em frente à janela de onde se avistava a bela fonte do jardim externo. Em poucos segundos, essa bucólica cena desapareceria para sempre e, com ela, os sete pequenos prédios vizinhos a sua casa. Era hora do almoço e as pessoas costumavam estar em casa. As três mulheres ouviram a explosão, a escuridão se espalhou janela afora e os cogumelos voaram em todas as direções. Numa fração de segundos, nada mais existia ao redor.

Frágeis e assustadas, elas perceberam que graças à mesa de madeira da cozinha, onde a família já se reunira inúmeras vezes para alegres refeições, estavam salvas do bombardeio. Instintivamente, tiveram a feliz idéia de se refugiar debaixo da grande mesa e ficaram ilesas depois das bombas, embora presas sob os escombros.

ATO HERÓICO

Jovem e alegre, no início da guerra, Dina não deixava de passear pelas ruas da cidade. Estudava em San Marco, nas proximidades de Veneza e fez amizade com uma colega com a qual saiu num dia em que o professor faltara. Caminhavam próximas a um trem parado, quando viram oficiais alemães, armados com fuzis e metralhadoras. Chegando perto dos vagões que tinham pequenas grades na parte superior, ouviram:

- Moça, abre a porta!
 
E assim acontecia em todos os vagões pelos quais passavam, que levavam jovens italianos, sem escolha, ao front para a luta a favor da Alemanha. Em certo momento, embora amedrontadas, puxaram o ferrolho da porta de um dos vagões e libertaram os moços. Dina não sabe dizer quem eram e quantos conseguiram fugir, mas sabia que os vagões levavam filhos, namorados ou maridos de mulheres que conhecia. Após o ato que considera sua única atitude heróica durante a guerra, escondeu-se com a colega de escola numa caixa de transportar pães que um padeiro, de passagem pelo local, conduzia acoplada a uma bicicleta. Assim, despistaram os nazistas.

NAMORO

Giuseppe Marchiori já era conhecido da família de Dina há muito tempo. Numa tarde, ela foi à Veneza de bicicleta e ele abordou-a: 

- Vamos dançar?
 
Aos quatorze anos, nas danças das festas que freqüentava, jamais havia tido um homem como seu par. Dançaram a noite toda, mas não houve um clima de romance, conta ela. Pouco tempo depois, ele foi convocado para a guerra e ficaram oito anos sem se encontrar. Em setembro de 1945, quando a Itália retirou seu apoio à Alemanha, os jovens italianos retornaram às suas casas. Então, Giuseppe a pediu em namoro. 

Porém, seu trabalho na guerra havia sido comprometedor pois, como dominava os idiomas russo e francês, fora convocado pelos alemães para um trabalho de contra-espionagem. Com o final da guerra, sua situação política ficara delicada. Teria que deixar o país.

VESTIDO DE NOIVA

Em junho de 1946, ele a pediu em casamento, mas Dina diante de toda a destruição da guerra, não se animava a casar. Sequer tinha um vestido. Por fim, marcaram a data para meados de julho e no começo do mês, Giuseppe saiu em busca de um vestido para sua noiva. Foi até uma cidadezinha perto de Verona e, ao fazer um parada num bar, encontrou um padre. Contou-lhe os problemas que estavam sendo um entrave para seu casamento. O religioso ofereceu-lhe, então, duas toalhas de linho da igreja, muito alvas, que dariam para a confecção do traje do casamento. Assim, casaram-se em julho, como pretendiam. Dina vestia um tailleur de linho branco. Já no Brasil, tiveram três filhos: Marco, Dante e Loredana.

AMÉRICA

O casal Marchiori, em função do trabalho de Giuseppe na área da construção civil, acabou adquirindo uma fábrica de cerâmica em São Roque-SP, onde passaram a residir em 1961. Na década de 1970, a empresa passou por uma crise pela falta de matéria prima. Pensaram em vendê-la e voltar para a Itália. Foi quando conheceram um americano que lhes sugeriu que abrissem um camping no local onde moravam, próximo à Araçariguama. Desfizeram-se da cerâmica, o camping prosperou, chegando a receber duzentos trailleurs por final de semana, e ficou com a família durante 26 anos. Dina e Giuseppe voltaram para a Itália a passeio cerca de 25 anos depois de sua partida, quando os filhos já haviam terminado a faculdade. Mas a família de Dina já viera ao Brasil visitá-la. Giuseppe sempre foi saudoso e gostaria de retornar definitivamente à Itália. Quando de sua morte, em 1985, Dina atendeu ao pedido do marido e espalhou suas cinzas no lago de Veneza, próximo ao local onde se conheceram.

Quanto a ela, depois de viver no Brasil desde muito jovem, jamais teve vontade de voltar a morar na Itália. Ao lado do marido e dos filhos foi feliz no país que a sorte no jogo de cara ou coroa lhe reservou. Em terras brasileiras, encontrou a harmonia, e em São Roque, sempre se sentiu em casa. 


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