Há algum tempo, tive esta conversa saborosa com a imigrante italiana Nunziata Rana, hoje com seus 80 anos, que
nasceu na cidade de Bitritto, província de Bari, na região da Puglia, e
radicou-se em São Roque desde os anos 1950, onde se casou com Gabrielle Vecchioli, também
imigrante italiano. Mas esta é outra história. O tema da entrevista foi gastronomia tradicional italiana e
seus enlaces com a cultura brasileira. Ela fala sobre a produção de alimentos,
a tradição que trouxe da Itália e que, muitos anos depois, fez nascer
a empresa familiar Nonna Nunziata, que produz conservas, doces e biscoitos,
aliando as receitas e o modo de fazer da cultura italiana tradicional, sem uso de
conservantes, aos modernos equipamentos hoje disponíveis. E conta primeiro como
foi o seu aprendizado na Itália com sua família, a iniciação nas delícias dessa gastronomia que, pouco a pouco, torna-se parte do patrimônio imaterial da cidade de São Roque.
Eu,
criança, observava minha mãe, nós fazíamos o tomate seco, que lá na Itália a
gente tinha que aproveitar tudo no verão, pra poder guardar pro inverno, pra
fazer o estoque, que no inverno você não encontrava nada. Então, nós fazíamos,
na época do verão, secar tomate no sol, a gente colocava numas esteiras, punha
no terraço em cima da casa, que vem (o sol) de todos os lados, né?
E tinha que secar com uns tules em cima pras moscas não pousar... E de vez em
quando, cada duas horas, a gente tem que virar o tomate pra secar de um lado e
do outro. E depois que secava, a gente colocava o tempero, alho, pimenta, sal,
um pouquinho de vinagre, e aí colocava numa vasilha de barro, e a gente
encobria de óleo, colocava uma folha de papel manteiga, amarrava e deixava
porque lá depois logo começa o frio, então não precisava nem pasteurizar nem
nada, era só pra aqueles seis meses de frio... E a gente usava durante o
inverno, que não tinha tomate, então quando queria fazer alguma coisa com o
tomate, a gente pegava tomate seco e usava.
E nós fazíamos também a massa de tomate, o molho, fazia o extrato de tomate, a
gente comprava tomate, cozinhava, depois passava na peneira e fervia com sal e
um pouco de óleo e depois colocava nas vasilhas de barro e punha no sol também.
Ia de vez em quando secando, tirando, mexendo com a colher, até ela ficar uma
consistência de extrato de tomate e também fazia o mesmo processo, colocava
numa vasilha de barro, cobria de óleo em cima e quando precisava fazer o molho
pegava umas colheradas daquele e a gente colocava no molho.
E tinha o molho de garrafa que nós fazíamos, tipo garrafa de cerveja, garrafa
de champagne, tinha que ser aquelas garrafas grossas. E a gente usava fazer o
molho, a massa de tomate, passava na máquina e depois a gente colocava esse
purê dentro da garrafa e punha rolha, amarrava e colocava no banho-maria pra
cozinhar, ou no forno pra pasteurizar e ali depois deixava esfriar naturalmente
e deixava pra usar o ano inteiro, aquele molho. E quando era o inverno a gente
usava aquele.
Essa produção toda era mais por
necessidade...
Tudo por necessidade porque a
gente tinha que fazer tudo nessa época, nós fazíamos figo seco, fazia
alcachofra em conserva, coisa que eu faço hoje e mantenho a mesma tradição que
eu aprendi com a minha mãe. Tanto que nem na Itália, hoje, não é feito mais
assim. Tudo sem conservante e eu continuo fazendo o mesmo processo que nós
fazíamos na Itália.
Quanto tempo vocês levavam para secar o tomate?
Ah! Às vezes uma semana, dez
dias, dependia da temperatura, do calor, tudo dependia do calor, e também tinha
que recolher antes da entrada do sol, porque não podia tomar sereno. E lá dava
pra você conseguir fazer o tomate seco no sol, porque o ar não tinha umidade.
Aqui eu tentei, mas não consegui fazer, porque embolora, estraga; e lá não, lá
conseguia fazer normalmente aquele tomate seco ao sol.
E agora como é feito? Qual é a mudança?
Agora, a única mudança é que não
é no sol, é no desidratador, nós temos forno que desidrata o tomate, tira
aquela água, e vai secando durante quase dois dias, vai secando no
desidratador... É mais rápido (que na Itália), não é uma semana, dez dias, é
dois dias só. A gente faz bastante. Porque lá, podia fazer quanto? 50 quilos,
60 quilos. Aqui a gente faz 120, em dois dias. 120 quilos de tomate, não que sai
120 quilos de tomate seco... (risadas). Diminui pra um terço e olha lá. O mesmo
tempero, sem conservante, tudo o mesmo.
Conta um pouquinho da alcachofra, que é uma coisa aqui da cidade de São
Roque, agricultura tradicional. Como é que a sua família preparava na Itália?
Nós fazíamos conserva, a mesma coisa,
cozinhava, depois colocava nos vidros com óleo, e deixava assim, temperava e
deixava com vidro fechado. É como eu falei, como lá é muito frio, a gente não
precisava pasteurizar, conservava a mesma coisa, agora aqui tem que
pasteurizar.
Então já entra mais uma técnica?
É, mais uma técnica no preparo,
porque aqui é muito calor, então a gente tem que pasteurizar, senão não dá pra
conservar, estraga muito.
Qual era a temperatura na sua cidade na Itália, no seu tempo?
Na minha região, que não era
muito frio, não é como na região do meu marido que a neve é constante. Ali tem
ano que nem chaga a fazer muito frio, assim, muita neve. Faz o frio, mas não
neve. Eu acredito que é uns cinco graus abaixo de zero. Até nessa temperatura
tem chegado lá na minha região.
Bem mais frio que em São Roque hoje, como o tempo das geadas...
Era bem mais frio aqui em São
Roque. Eu quando comecei a fazer... Porque eu fazia alcachofra aqui na minha
casa, pra dar pros amigos, na época de alcachofra, da produção, eu fazia pra
dar no Natal pros meus amigos... Mas eu fazia quanto? 10, 15, 20 vidros, o
máximo, pra dar pros amigos, mas eu colocava na geladeira, porque eu não
pasteurizava, então eu colocava na geladeira e quando chegava no Natal eu já...
Todas as minhas amigas estavam esperando eu presentear elas com alcachofra. E
aí, depois quando passou um tempo que as amigas foram acostumando com a
alcachofra e aí, uma queria dar de presente pro médico, outra queria dar prum outro amigo que comentava da nossa
alcachofra... Aí que elas começavam a pedir pra eu fazer pra vender, mas eu não
tava preparada ainda pra isso, né? Aí, de tanto insistir, eu comecei a fazer e
hoje... Depois que nós abrimos a firma aqui, a gente se propôs a fazer uma
coisa maior. Como não tem geladeira, nós tivemos que pasteurizar pra manter o
ano todo a alcachofra.
Então a senhora começou a fazer movida pelo interesse das pessoas...
Foi por esse motivo mesmo que eu
falei pra você que eu presenteava minha amigas e elas queriam comprar porque eu
dava, mas elas não tinham coragem de pedir mais, porque elas ficavam chateadas.
Aí me procuraram pra eu fazer pra vender... Mas meu marido não deixava eu fazer
pra vender, aí eu falei, vou fazer pras amigas... Comecei a fazer pras amigas,
mas vinha a amiga da amiga e foi, foi aumentando na minha casa, foi assim
chegando a um ponto que eu não tinha mais liberdade na minha casa, porque era
toda hora gente pra vir comprar as coisas, né? Tomate seco, berinjela, a
sardela, a alcachofra. E aí foi aumentando. Aí começou também, uma falava assim:
“Você faz o crostole no Natal, por que você não faz também?” ou “Faz prá mim
porque eu tou... Nunca mais eu comi depois que minha avó morreu.” Então eu
comecei a fazer o crostole – um doce
italiano que na Itália é feito no Natal e no Carnaval. Uns chamam de crostole, outros chamam de latugue, outros chamam de chiachere. Então, cada região dá um
nome. Outros falam crustule, cruste. Quer dizer, cada um dá um nome.
Que doce é esse? Como se faz?
É esse doce italiano que eu faço
que é amassado com anizete, licor de anizete, e aqui o nome dele é cueca virada, mas na minha região é crostole.
Então, vai ovos, manteiga,
açúcar, farinha... É uma massa, abre depois corta, passa na máquina fininha,
corta no meio, vira tipo uma gravata e aí eu rego com anizete e açúcar...
E a sardela, como é ? Também veio da Itália?
A sardela tem de várias
regiões... tem a sardela romana, a nossa sardela, que é da minha região...
Então, cada região faz de um jeito. Uns fazem com extrato de tomate, outro faz
com pimentão, mas tudo vai aliche, né? Que é... filé de aliche. Tem uns que põem
um de qualidade e tem outros que põem aquele mais barato, depende do gosto de
cada um, né?
E no seu preparo, a senhora seguiu também a tradição da sua família?
Já. É aliche, pimentão e os temperos.
É igual, é.
Hoje a senhora tem também a produção de doces?
Temos, temos geleias de vários
tipos, temos compota, figo, doce de abóbora, tem fruta da época, doce de pera,
pêssego, dependendo da fruta que eu encontro na época eu faço. E tem também os
biscoitos. Tem sequilho de leite condensado, tem de coco, tem de limão, tem
biscoito de nata... Tem amareto, que é um doce especial da minha região, que
é... Na Itália toda tem o amareto, mas o meu é do estilo da minha região, não é
o amareto tradicional da Itália. A diferença é... um outro tipo que eu não sei
como é que faz, o meu vai só amêndoa, açúcar e o ovo. Agora da outra região não
sei se vai farinha, porque ele é mais macio, é mais escuro, é mais rachadinho.
O meu não, o meu é diferente. E tem os biscoitos de nozes, tem os palitos de
cebola, tem a palha italiana.
Isso tudo se fazia na Itália ou tem receita brasileira incorporada?
Aqui incorporei. Incorporei o
sequilho de leite condensado, o de coco... Que é coisa daqui do Brasil... Agora
o biscoito de limão é da minha região. A berinjela que eu faço também é da
minha região, tudo da minha região. Tem o alho, aperitivo também, que eu faço
que é da minha região.
E as frutas? Eu me lembro que a senhora mencionou antes que encontrou
frutas (no Brasil) que não conhecia na Itália...
É. As frutas que eu não conhecia
era abacaxi, manga, abacate, goiaba, jabuticaba, é... que mais que eu não
conhecia? A banana... A banana eu conhecia, sim, na Itália, mas nunca
experimentei, nunca tinha comido. Essas frutas tropicais, nunca...
Olha a fruta brasileira que eu
não fazia lá (o doce)... A única que eu faço é a geleia de abacaxi que lá não
tinha, mas de uva eu fazia, de amora... Nós temos amora lá e a gente faz,
inclusive tem amora branca e amora vermelha. O damasco, nós tínhamos muito damasco
lá na minha região. E o doce de abóbora que eu aprendi aqui, (que lá) não
tinha... Mas é diferente, por exemplo, aqui põe o coco.
Mas lá tinha abóbora...
Tinha, a gente cozinhava pra
assim pra comer, mas pra fazer doce... Na minha época lá na Itália não se fazia
muito esses negócios de... O que era salgado era salgado, então... Nós aqui
aprendemos a comer arroz doce... Aprendemos a comer doce de abóbora, coisa que nós
não... É da cultura, é... Porque o que era pra ser salgado, era salgado, não
fazia doce. E a gente tem muita mistura, porque como aqui tem muito povo
estrangeiro de várias regiões, então as comidas foram modificando e as pessoas
vão adaptando pra cada cultura e vão surgindo novos pratos, novas delícias, né?
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